Amor Proibido - Capítulo 2

Após ter acendido algumas velas que trouxe de casa – visto que várias lâmpadas do teatro estavam quebradas – Gabriel se afundou confortavelmente numa cadeira macia da platéia, no que se permitiu folhear o próprio diário; um livreco com dois dedos de páginas, cujo conteúdo das primeiras, podia-se encontrar toda uma época de pureza de sentimentos, inocência e alívios registrados. Período que nem sequer imaginava a existência do mal. Já que é assim mesmo que acontece com os puros de coração: em um primeiro momento de suas vidas, ao confrontarem-se com outras personalidades, erroneamente acreditam que essas pessoas pensam da mesma maneira que elas. Todavia, e, talvez graças à providência divina, os ingênuos logo percebem que não podem viver tão crédulos. Assim, paulatinamente são levados pela dor a perceber o quanto à experiência tinge a história de cada um ao evidenciar que a vida é de verdade. Quem sabe, seja até por isso que tantos poetas sempre tratam de pôr no molde das letras a idéia de que quando eu – O Tempo – passo por eles, destes ficam somente as lembranças de seus sentimentos mais infantis.

Hoje, algumas “páginas” depois, Gabriel entendia o significado das palavras: cautela, revelação e dor. “Porque ninguém aprende nada de importante se não viver a emoção do momento” – dizia para si mesmo com freqüência. O jovem, após aprisionar a idéia central de um poema, simplesmente podia fazer qualquer outra coisa, passasse, eu mesmo, quantas vezes quisesse por ele. Apesar da pouca idade entendia que, do centro pode-se atingir as extremidades, tornando o abstrato macio e palpável.
O poeta que via o mundo com olhos claros, não possuía corpo exagerado nos músculos, era magro, de ombros largos e cabelos ondulados castanho-claros. Sempre elegante, quer vestisse jeans ou linho e adorasse o negro nas roupas, continuamente, dava mostras do seu estilo – como se observasse um costume – ao envergar combinando, num tom principiado ao sério, alguns inseparáveis acessórios tais como: sapatos de bicos levemente quadrados, cinto e relógio. E já que mencionei algumas das particularidades do meu protegido, não poderia deixar de acrescentar ao pé do ouvido: a aparência de Gabriel sempre facilitara as coisas para ele. É...
Bem sei o quanto a beleza influi no caráter de uma pessoa enquanto ela se desenvolve. Afinal, sou eu o único a rasgar as horas em mil pedaços, como quem olha as fotografias de um filme, percebe cada cena, e, por cada negativo que passa, analisa um momento do crescimento do mundo e de seus frutos. Por isso, enquanto amontoava os séculos, não me foi difícil acompanhar a história das pessoas mais desejadas – já que estas também a mim fascinam. Constatei que essas personalidades foram sempre bem recebidas aonde quer que fossem. Mesmo porque há uma pré-disposição humana em se tratar com melhores cuidados o que se vê como belo. Agora, você pode até me perguntar: como se sabe se essa ou aquela pessoa é realmente bonita? E categoricamente lhe respondo: todas as pessoas são belas e possuem alguma forma de beleza, mesmo que interior. Todavia, se percebemos que muitas pessoas concordam com o fato de que certa personalidade reúne beleza suficiente para aprisionar os olhares à primeira vista, esta sim pode se considerada uma criatura bela. Ou seja, a beleza causa a mesma impressão em opiniões que, em muitos outros assuntos, assumem sentidos opostos. Trocando em miúdos, a beleza exterior favorece o ser que a possui, no sentido de lhe outorgar um conforto ilusório de segurança, já que é a personalidade mais paparicada em qualquer ambiente. Daí, você leitor, poderá até me dizer que para toda regra logo se envereda uma exceção. Concordo! Outrossim, nem de longe é o caso aqui. Afirmo isto, porque Gabriel tinha consciência da presença deste amparo invisível todas às vezes que era convidado a vislumbrar, porta adentro, os olhos de outra pessoa. Esta simbiose, uma vez estabelecida, era prova incontestável da existência de um poder misterioso que emanava daquele rosto; assemelhava-se a recitar um verso sem ter de expressar uma só palavra. Pois o desejo, poderoso que é, nestes momentos já nasce implícito.

Sei que falo muito, pois é da minha natureza dar muitas voltas; admito até estar causando aqui a impressão de estar, matando... (o Tempo). Ora! Nem de longe é o caso, como poderia matar-me? Mesmo porque sou perpétuo enquanto houver razão para que eu exista... Confesso a você, leitor, e me é tão duro admitir a verdade crua, de que apenas conservarei está consciência crítica que me alimenta, emociona e me enche de histórias todos os dias, enquanto o homem, essa criatura de Deus, existir. Duvida? Pense numa pessoa morta... O que alguns homens sempre dizem uns aos outras com pesar ao aludirem sobre a morte de alguém? Em muitos casos é algo... mais ou menos assim: “O Tempo dela se extinguiu”. Entende agora? Deixo de existir paras as pessoas que morrem. Agora pense no que aconteceria se a humanidade deixasse de existir... que processo se desencadearia sobre mim? Nunca pensou sobre isso, não é? Mas eu sim. Com efeito, tudo o que sou é o que demais tenho. Claro que ainda hei de continuar envelhecendo as pedras e até a dita poeira cósmica, quando o homem tiver passado. Entretanto, imagine só a condição que se estabelecerá: se não há ninguém mais para intuir que eu exista, realmente estarei extinto. Pois, sem a consciência do homem perderei também a minha, entendeu agora? Não serei mais que algo disforme que continuará o seu trabalho, abandonado às pedras e ao pó; completamente apagado, no muito um nome escrito a lápis e que mais tarde vieram e lhe passaram a borracha. E o que restará? Socorram-me! Apenas sinais de uma existência, pouco mais que ranhuras sobre papel.
Desculpe-me. Precisava desabafar... Estou melhor agora. Nem pareço aquele que iniciou a narrativa, não é mesmo? Não importa, voltemos agora a Gabriel com os seus dilemas.

O teatro estava tão quieto que o poeta rapidamente se lembrou dele. As poltronas exibiam um azul quase marinho em seus estofados. O chão de taco consumia para si toda a luz, havia algumas cortinas e pesados ventiladores que nasciam das paredes. O palco se erguia cerca de um metro e meio do chão. Duas escadarias às laterais levavam um público menor a experimentar o que de melhor as cenas doavam. Muitos desses “privilegiados” confidenciavam – a boca pequena – apreciarem melhor assim o espetáculo; porque uma vez colocados ali, não conseguiam perceber os ínfimos erros difíceis de serem notados à distância, o que tornava aquela leitura uma tanto mais bela.
Antes de continuar a escrever o poema definitivo, Gabriel percebeu que havia algo já escrito no verso da linha em que começou. A folha, ora impura, fôra inscrita a várias noites passadas, tantas que não mais conseguia se lembrar. Tentou começar a ler, contudo, os olhos falharam devido à hipermetropia que o contaminava. E, não querendo forçar mais as vistas – por temer a dor de cabeça que sempre o visitava depois – despegou os óculos da blusa e os vestiu com a maior naturalidade. As hastes amarelo-ouro comungavam, numa espécie de tom sobre tom, com as mexas de cabelo que lhe cobriam a testa ampla, assim como as orelhas quase élficas – como gostavam de lhe aporrinhar os amigos...
O bardo, agora em seu elemento e, após ter colocado os citados óculos, experimentava alguma liberdade para correr com olhos mais confortáveis a primeira linha de uma composição escrita há muito de mim. Palavras cuja presença emergia ali de maneira inusitada, caída a um encanto; códices riscados por ele mesmo, como já mencionei antes, nas costas de um rascunho que ficara esquecido, meio que emaranhado numa das entre páginas de sua agenda. Ele desembaraçou o papel e, deixando que o fulgor de algumas cenas do passado novamente o inundassem, rememorou:
“Sentada num banco frio, vi a metade de mim, parada a olhar-me, pálida qual uma estátua. Notei também que sorria de maneira pétrea em amorfa alegria. Contudo, advertia meu coração, que não sentia mais aquela enorme euforia que no meu peito acontecia todas as incansáveis vezes que a via, receava e sofria. Do que sei apenas sei o que não sinto. Todavia, a vida não mais corria ali, isso eu agora percebia, naquela fria metade de mim.”
Gabriel leu de maneira vagarosa cada sentença do poema... Como ele tinha se afeiçoado àquela garota! Mas, mesmo o aço jogado ao relento destempera, assim como as invariáveis mágoas se deitam murchas com o meu vagar cioso. Pois o sentimento antes fortuito se vê tacanho e mórbido, como uma brasa que definha lentamente. E assim foi até que numa bela noite, o acaso – outro velho mexeriqueiro das emoções humanas – optou a reuni-los novamente – a musa e seu poeta – a fim de dar pontuação final ao livro de suas vidas.

Aconteceu que num dia de festa e em meio ao inverno, o “poeta de riu doce” a viu sentada num canto da sala donde estava, ambos cercados pelos mesmos amigos. Ela, naquela ocasião, discreteava o olhar tentando não chamar a atenção para o lugar que fitava. Mas o rapaz logo tratou de colocar uma parede entre eles, indo ficar com alguns amigos que estavam reunidos num outro cômodo. Depois de anos sem se falarem, o jovem percebeu que ela não era mais a pessoa por quem ele se apaixonara. Tudo que julgava vivo dentro de si, se reduziu à consistência de suas memórias. A sua metade não mais existia; trataram de deixar no lugar apenas uma cópia em frio mármore, sorrindo enquanto sentia-se, como ele, desconfortável. Era a própria Monalisa emoldurada; um sorriso que nada nos diz além de uma aparente felicidade. Tal sensação talvez ocorresse a ambos pelo fato de estarem tão próximos. Deve ser por isso que as pessoas temem o amor, por acreditarem que finda a sua existência etérea, não mais haja lugar para a amizade dos que antes foram amantes.
Dali em diante, o menino poeta compreendeu que aquele corpo não estava mais vivo. A sua metade permanecia no mundo, contudo, foi o próprio mundo desta que lhe subtraiu a vida. Uma vez que se entende que as cores da vida nascem da presença do amor. O fato verdadeiro – pensara o jovem – era que a realidade dela tornou-se dura demais para se reconhecer às causas. Assim se nutria esquecendo, enquanto mentia para si mesma e, um dia a mais, apartada da verdade, vivia. Como na canção que diz: “Distraindo a verdade e enganando o coração! Enganando o coração...”

Gabriel voltou a página ao avesso da folha que mantinha entre os dedos. A metade de mim, como chamou o poema que acabou de revisar, ficaria ali estampada no verso do que ele agora deveria criar.
O rapaz trazia nos olhos o frescor da inocência novamente. Sim! O frescor se refaz quando nos sentimos novos e dispostos. Aquela sensação de leveza só era possível, se legado ao horizonte, todo o contexto pelo qual passara fosse transferido de sua alma para outra. Só ele próprio entendia a dor que sofreu; apenas ele sentiu na pele a febre que lhe ocorreu. Quantas perguntas brotaram de sua mente àquela época, sem que de início conseguisse construir uma resposta – de fato, não há fases ou novos amores que afastem da vida dos homens tais momentos de confusão solitária. Em verdade, a resposta da qual ansiava só viria, depois de muito observar o mundo a sua volta e no que dentro dele havia. Então, depois de muito ponderar sobre o que tinha falhado; do porquê as coisas tomaram o rumo que tomaram, Gabriel, finalmente, encontrou a sua tão procurada conclusão; bastava apenas que a rabiscasse numa folha, para encontrar finalmente a paz. Não obstante, logo mais precisaria mesmo entregar um novo poema para que fosse publicado no folhetim do qual era o editor juntamente com outros poetas. Esta associação mais tarde ficaria conhecida como: A Casa dos Poetas. Eram dessas publicações que viviam ele e seus colaboradores. Em suma, restava unir o útil ao agradável. Então, o rapaz leu uma vez mais a única linha presente naquele lado da folha, alterando um ‘nos’ por um ‘a’. Repetiu a leitura, só que agora, deixando-a que ecoasse dentro de si:
“E seu anjo viu quando o outro vil a enganou...” – a frase era bem mais que uma idéia em si mesma, refugiando-se em seu íntimo Gabriel abstraiu-se: “Inesperadamente ela me deixou, nós que éramos indivisíveis. Mas ela acreditou nas ilusões que lhe diziam. Ela estava tão satisfeita de mim que não entendia o que poderia ser ficar longe de quem se ama e ter fome de amor. Sim, porque a solidão é como uma fome que nos obriga a saciá-la.” – ponderou longamente depois de fitar a parede à frente, sem realmente estar vendo-a. O bardo que possuía sobrancelhas pintadas à mão deitadas sobre duas esferas tão caídas a semelhança de esmeraldas quanto abissais, cingiu o lápis pelo ar enquanto passeava um pouco mais pela própria alma:
“Como se enganaram aqueles olhos sempre brilhantes, castanhos, por vezes quase verdes. Iludiu-se quando o seu mundo um pouco se abriu; começou a sair, e novos amigos surgiram relegando a mim, que estava tomado pelo ciúme, a um segundo plano. Mas depois, quando se percebeu sozinha, deve ter sentido no horizonte de sua alma, várias nuvens tempestuosas varrendo-a com a solidão”
Gabriel recostou-se na cadeira, levando a mão esquerda até a fronte ao mesmo que vasculhava a si próprio:
“Quantas vezes tentei lhe dizer que um rompimento àquela altura nos separaria talvez para sempre. Mas os motivos dela eram maiores, dizia à todos. Tanto que, a cada conversa, mais e mais a distância seguia se abrindo entre nós”.
O jovem poeta, que ora emergia os olhos do ambiente, não se demorou muito em abrir as pálpebras lentamente. Com efeito, sentia novamente aquela entranha sensação desafeiçoada. Afinal, aquela a qual era única dentre os lírios, havia traído a ambos; ele e o próprio anjo que zelava pela segurança dela. Recordava ali e, mesmo mal podiam acreditar, que aquela boca exuberante pôde um dia se contradizer tanto:
“É... Aquelas palavras foram à gota d’água num mar de muitas lágrimas. Dentro de mim senti algo ruir naquele dia específico. Como se um raio houvesse me partido ao meio. Como estava enganada ao meu respeito; como estava enganada sobre nós! Sim, muitos opinaram sem se importarem com a dor que causariam, sombras... Mas, certamente, agora você sabe o que sei.”
Gabriel meio que em transe, dobrou-se sobre a folha de maneira ávida, riscando letras na folha branca e seca. Ele precisava dar vazão ao que o seu coração exprimia. Assim, ia organizando aquele contexto que vivera, viu, riu e chorou, tudo na forma de um poema. Pensando melhor, qual a melhor maneira de restituir a realidade em torno de si, senão pela maneira isolada de ver o imprescindível?
O jovem então escreveu em silêncio durante alguns minutos, parando apenas uma vez, quando quebrou a ponta do lápis ao ribombar o que seria a penúltima parte do poema prometido aos amigos para antes do almoço – a diagramação e impressão do folhetim se dariam àquela tarde. Logo, o poeta ergueu os olhos claros, firmou-os nas letras de sua criação e finalmente pôde ler:


“O anjo do engano

E seu anjo viu quando o outro vil a enganou: quando no fio do tempo você cortou o amor que era um, tornando-o, dois corações. No instante em que acreditou no que ia a sua volta, e não mais naquilo que a nutria e alimentava; por ora farta, já esquecida da “fome”.
E seu anjo viu quando o outro vil a enganou: quando você deixou que os olhos tintos dele se misturassem às areias dos seus, pôr-do-sol, luz e trevas. Quando consentiu que soprassem nos seus ouvidos visões e imagens; depois, enfim entendeu, do que plantado foi por si semeado, você colheu apenas tempestades.
E seu anjo viu quando o outro vil a enganou: e esse mesmo tentou lhe dizer o que iria acontecer. Todavia, plena de si, seguiste e os ignorou. Quando afirmou para o vento orgulhosa: “Você e ele, vozes que se confundem, têm obsessão por mim!”
Sim! Raio e rasgo, o seu anjo viu quando o outro vil a enganou: quando você, plena e forte na voz disse isso esquecida no saber, de que qual o anjo que não leva no intuito da guarda, senão, boa obsessão?
Ah! O seu anjo viu quando o outro vil a enganou: quando já passado os ventos do tempo – e não os do esquecimento – penso que você agora vê o que vimos, que o outro vil realmente... Enganou!


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